Filosofia
da música e religião
Daniel
Vieira de Carvalho
Do mesmo modo que é
estranho acreditar que alguém realmente não goste de um bom chocolate, ou de
sorvete, em plena era digital é muito difícil encontrar alguém que não ouça
música – ainda que apenas passivamente, como no caso dos fumantes passivos!
Isso não significa que todos possuem o mesmo modo de apreciação da beleza desta
arte, a música é apreciada em cada tempo também de acordo com as
convenções sociais. As nossas convenções, não era de se espantar, são quase
todas degeneradas em gosto, não há língua que tenha 100% do paladar – o que
dizer, então, da imensa falta de tempo para ouvir, escutar, experimentar boa
música? –, portanto seria mesmo uma bela ilusão pensar que todos tenhamos bom
gosto musical, algo muito parecido com aquele “bom senso bem distribuído” de Descartes.
Por outro lado, a modernidade abriga possibilidades que os antigos
desconheciam, a possibilidade de um mundo desencantado, sem canção, sem música
que ofereça ao homem alívio das dores e sofrimentos do mundo, sem perspectiva
metafísica que o console de sua desesperança.
Longe de nós, aqui,
discutir qual o critério da boa arte, qual a melhor forma de
expor os tons e semitons da escala musical, apenas deixar um pouco mais
explícita a nossa realidade: ouve-se música como se toma um sorvete, ou quando
lava-se a pia e os talheres, ou quando dirige-se um carro, ou ainda quando no
motel, e no trabalho, e na escola, como se a música fosse apenas mais uma
mercadoria morta nas prateleiras virtuais, mas nunca como música, nunca como
som, nunca como arte.
Boécio teria muita
resistência ao modo como ouvimos música hoje, mas há muita probabilidade de que
se fosse possível ele abrir um portal no tempo/espaço, chegando ao nosso tempo,
certamente adoraria saber que avanços tecnológicos, tanto na acústica quanto na
área instrumental, a música atingiu até agora, não obstante lhe ficasse
obscurecida a perspectiva perene da música das esferas.
A música, como qualquer
outra arte, se apresenta sempre como mutatis mutandis e seria muito
desonesto de nossa parte se não levássemos em consideração o papel fundamental
que as religiões tiveram para que hoje pudéssemos ir até o passado e apreender
as infinitas partes que compõem a harmonia da música humana, que seja na China,
na Grécia ou na Índia, ou na Europa cristã. No caso ocidental, a Idade Média
não pode simplesmente ser considerada sinônimo de nulidade artística apenas
porque não se compara com a Antiguidade ou por que é uma oposição obscura e
maléfica diante do despertar do Renascimento.
Boécio mesmo é um bom
personagem para ver melhor pelos óculos da história. Por mais de 600 anos a
obra De institutione Musica, de Boécio, foi utilizada como principal
fonte teórica musical. Além de traduzir diversos textos gregos, na área da
astronomia, música, geometria e matemática (o quadruvium), Boécio,
nascido em Roma (c. 480), se tornou membro político da Itália em 510, depois
foi acusado de traição, prática de magia e publicação de textos subversivos.
Foi condenado à tortura até a morte. [1] Para
Boécio, o músico é aquele que refletiu por si mesmo sobre a ciência da canção,
não pela servidão do trabalho, mas pelo ato de contemplação, e Música é, na
verdade, a totalidade dos fenômenos da natureza, em que há ordem e harmonia[2].
A
idéia antiga de harmonia está ligada aos diversos graus de simbolização
da ordem cósmica: “Os planetas aparecem dispostos no universo como escala (que
é um dos sentidos dados na Grécia ao termo “harmonia” – ordenação, equilíbrio e
acordo que se depreende dos sons musicais, no modo como conciliam e põem em
consonância a diversidade dos contrários).”[3]
Se hoje o músico se vê
atado à produção comercial de sua arte, a antiguidade nos apresenta um panorama
muito diverso: Para as principais civilizações da antiguidade, o som
organizado inteligentemente representava a mais elevada de todas as artes, e a
música – a produção inteligente do som através de instrumentos musicais e das
cordas vocais – a mais importante das ciências, o caminho mais poderoso da
iluminação religiosa e a base de um governo estável e harmonioso.[4]
Já a Grécia, considerada
não apenas berço da filosofia, mas da música ocidental, construiu um éthos,
uma doutrina sobre os efeitos que a música pode produzir no homem e na
comunidade (pólis).
“A
cosmologia platônica é um aparelho de som onde a música total contida no disco astrológico,
em sua recorrência infinita, é movida pelas intervenções (estereofônicas) do
tempo, reproduzida em ritmos diversos e em dois canais (como se o presente
tocasse num canal, ou numa caixa de som, o futuro noutra e o passado, que tem
no mundo platônico uma precedência sobre as outras dimensões do tempo, tocasse
nas duas). A harmonia sofre as pontuações temporais, suas intermitências
rítmicas, seus pontos de ataque e repouso, de entrada e saída, sem deixar de
soar na sua estática circularidade.”[5]
Se viajarmos até a Índia,
encontraremos o poder místico do OM, som primordial que dá condições materiais
de manifestação. Há, por todos os lugares onde a experiência com o Sagrado
acontece, uma magia um encantamento, uma exaltação aos poderes ocultos nos
sons: Entoar o OM em combinação com certas disciplinas mentais e
espirituais, é de fundamental importância na raja ioga. Em algumas técnicas de
meditação, o OM, na verdade, não se pronuncia, mas simplesmente se imagina com
o ouvido interior, afinando, portanto, a alma diretamente pelo Som Sem Som.[6]
O que fica diante de nós,
contudo, são as dúvidas do homem moderno: a música ainda pode nos conectar a
algo que realmente valha a pena? Haverá alguma perspectiva nova no que diz
respeito à experiência antropológica do Sagrado e à música? A música deve dizer
alguma coisa, ou não deve dizer nada? A serviço de quem a música fica refém
numa época de desencantamento? A experiência do Sagrado pode abarcar
também o ruído moderno das máquinas?
[1]
CASTANHEIRA, Carolina Parizzi. De Instituione musica, de Boécio: Livro 1:
Tradução e Comentários.Dissertação de Pós-Graduação em Letras. Universidade
Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte: 2009. Acesso em: http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/ECAP-7QRGC9/disserta__o_completo.pdf?sequence=1,
25.08.2018.
[2]
Conferir mais informações em: http://triviumquadrivim.blogspot.com/2013/02/boecio-e-musica-das-esferas.htmlm
acesso em 25.08.2018.
[3] WISNIK, José Miguel. O Som e
o Sentido: Uma outra história das músicas. 3° edição. Companhia das Letras, SP:
2009, p, 100-101)
[4]
TAME, David. O Poder Oculto da Música: Um estudo da influência da música sobre
o homem e sobre a sociedade, desde o tempo das antigas civilizações até o
presente. Tradução: Octavio Mendes Cajado. Editora Cultrix, SP: 1984, p. 19.
[5] WISNIK, 2009, p. 102
[6]
TAME, 1984, p. 184