Um texto que escrevi em 2010, quando tranquei a matrícula na faculdade dehoniana, onde estudei filosofia.
05/10/2010
Depois de ter trancado a
matrícula na faculdade, li poucos livros de filosofia e não senti o declínio do
exercício de filosofar, pois aproveitei de tudo o que estudei e pesquisei
durante os últimos três anos como matéria prima para construir o meu próprio
pensamento.
Devo reconhecer que muita
coisa mudou nestes curtos e conturbados anos de faculdade; experimentei um
pouco (às vezes muito) de tudo e isso somente acrescentou maturidade.
Infelizmente, esta
maturidade apenas eu a percebo, pois a gravidade e seriedade de um adulto
normal estão completamente enraizados nos poços obscuros da moral cristã.
Tenho para mim – e talvez,
exatamente nesse aspecto, eu tenha descoberto minha liberdade e alegria – que
um verdadeiro filósofo, amante da luz (sofos) e de tudo o que é vivo e
ascendente, jamais poderia levar a vida tão a sério... De um camelo domesticado,
carregador de fardos alheios, tornei-me leão dominante com vontade de
destruição, sangue e caos; de leão orgulhoso passei a viver como criança,
desapegado de moral, regras e deveres sociais.
Cheguei
a um determinado momento em que não pude resistir o desejo de olhar o abismo;
olhei e ele me devolveu o olhar de tal modo amedrontador e apavorante que tive
de cerrar os olhos com esforço. As palavras que giram em torno do abismo são
todas cruéis e terríveis: medo, morte, escuridão, desespero, angústia. E não é
de se espantar, dado o número de pessoas caindo nele! De fato, grande é o poder
do abismo, diria a “aranha”, e não há quem não o testifique.
Contudo,
observei todas as pessoas caindo no abismo, gemiam e choravam sem saber o que
fazer. É preciso, como diria o espírito zaratustriano, estender uma corda entre
uma e outra margem do abismo, rindo de seu penetrante olhar.
Rir
com sarcasmo, ironia e desdém, pois rir de felicidade é como nuvem afugentada
pelo vento, logo some e não se lembra mais de novamente existir.
Todos os que nascem são
humanos porque são inseridos em sua linguagem humana. E
no final, tudo não passa apenas de proposições, argumentos e balbucias sem
sentido causal.
Entretanto,
se todos são humanos por participarem da
mesma forma verbal de proferir o mundo, não deveríamos ser iguais? Mas há na
própria linguagem as brechas necessárias para encontrar a resistência ou a
oposição. Existem, desta forma, dois tipos de linguagem: uma da maioria,
massificada e outra da que a resiste e que, por ser uma pequena parcela da
coletividade, é colocada às margens. Daí que se possa compreender a diferença
crassa entre as linguagens de uma determinada cultura, a massificada, inglesa
por exemplo (em meados dos anos 70) e o modo verbal de pronunciamento do real
dentro de uma subcultura, como o movimento punk britânico. Existem outros
exemplos que poderiam ser adicionados aqui, mas basta olhar com mais atenção
para a linguagem de uma cidade e para a linguagem marginal que foi construída
para perceber facilmente essa variedade.
Pode
ser que membros que estiveram uma vez embolados na massa tornem-se força de
resistência em outras partes, mas nunca isso ocorre por vontade própria, o
processo é lento e diz respeito ao próprio mal-estar cultural existente em
paralelo ao desenvolvimento técnico. Foi o que Freud explicou em “Mal-estar na
cultura”, provando que o aprimoramento da técnica cria automaticamente uma
sensação de desconforto a nível de “inconsciente coletivo” (emprestando o termo
jungiano).
Os
que fogem das normas prontas e já estabelecidas no âmbito social, os anormais
(que literalmente estão fora da norma), são jogados ou se isolam por perceberem
que são diferentes demais. Existem várias formas de escapar num momento desses,
como a música e a arte em geral, por exemplo, ou mesmo as drogas (ambas com a
mesma função). Um fato curioso sobre este aspecto é a existência de mendigos na
cidade. Na verdade, não se trata de uma existência mesmo, mas de uma falsa
existência, já que ninguém se comunica com eles, eles estão privados de quaisquer
relações (no sentido lógico, apesar de metafórico... Explico: Na lógica A pode
se relacionar com todas as outras letras, menos ela mesma. A não pode se
relacionar com A. Para que a existência de A seja afirmada é crucial sua
relação com as demais letras, por exemplo: A-B. A identidade de A só é
encontrada por causa da existência de B, ou seja, é uma identidade criada por
meio da negação: “Eu não sou B, nem C, nem D... por isso, sou A, existo como
A.” O caso dos mendigos é bem parecido. Eles não sabem que existem, pois estão
privados de todas as relações possíveis. Eles não podem se reconhecer
mutuamente, seria uma incoerência lógica, posto que A não pode se relacionar
consigo mesmo. Isso se torna tanto mais verídico quando olhamos para o papel
que os demais países possuem para a construção de uma “identidade brasileira”.
Como seria possível construir uma identidade brasileira se não existisse nenhum
outro país que lhe provocasse alguma cisão lógica com potencial de afirmação?
Se somente eu existisse e nada mais... Se eu apenas existisse no meio de um
Nada absoluto... Como eu saberia diferenciar Eu do Nada? De fato, eu estaria em
um determinado lugar do Nada, pensando alguma coisa... então esta comparação
seria inverossímil... Mas, apenas por suposição, pensemos que fosse possível
apenas eu existir e mais ninguém, nenhuma outra criatura ou objeto, nenhum
ente... Se assim fosse Eu seria o Nada, ou seja, eu não existiria, não há
negação e é exatamente por meio da negação que se pode criar identidades!)
O
que interessa, porém, é que ao encontrarmos a face do diferente poderemos
sempre ter certeza de que algum acidente de percurso aconteceu. Em sã
consciência ninguém quer se afastar da sociedade. Fora da sociedade há
desequilíbrio, desordem e violência; em outras palavras: “fora do frágil
castelo de areia que construímos há uma natureza e um cosmo imenso cuja
preocupação não é nem de longe a comunidade planetária terráquea”.
Por
isso mesmo nós, homens e mulheres, nos unimos para não ter de enfrentar, cada
qual no seu devido galho, o tormento de existir.
Concluímos
que, se conseguíssemos tal façanha, voltaríamos para a tranqüila normalidade,
onde tudo já está pronto, onde tudo é estável... Mas uma vez que se experimenta
este sentimento que convencionamos nomear como liberdade, nunca se consegue
livrar do peso de ser estranho e bizarro... Se eles fossem em menor número, nós
seríamos os normais, de acordo com este critério, e eles, os marginais.
Vemos,
portanto, duas coisas bem distintas: a liberdade é, ao mesmo tempo, a melhor
sensação dessa existência fugaz e a mais opressora, porquanto aqueles que são
livres estão em número absurdamente pequeno; e que tanto faz estar deste ou
daquele lado, pois o critério utilizado para estar ou não livre é relativo
apenas ao grupo “geograficamente” localizado, ou seja, se você estiver aqui é
livre, se ali, é parte da massa, mas se a ordem e o lugar invertessem seria o
mesmo que nada, porque todos são humanos e estão destinados à podridão do
túmulo.
A
proposição final, penso, é: a linguagem é quem dá existência às coisas, aos
objetos de conhecimento. Não há como o homem conhecer as coisas fora se ele não
aplicar um raciocínio lógico para este intento, se ele não outorgar nome, se
ele não delimitar objetivamente os entes então eles não existem. Não é que não
existem fora do ser humano, mas não existem dentro da mente, dentro do humano,
pois o humano só pode reconhecer as coisas que estão à altura de seu poder de
conhecimento, o que só ocorre por causa da linguagem. Em outras palavras, a
linguagem, como já disse Heidegger, dá Ser às coisas.
Existência, Ser e
Linguagem também são palavras... Mais um dos joguinhos macabros da
hermenêutica!