“Responderam-me:
‘Por que um chapéu daria medo?’
Meu desenho não representava um chapéu. Representava uma jiboia digerindo um elefante. Desenhei então o interior da jiboia, a fim de que as pessoas grandes pudessem entender melhor. Elas têm sempre necessidade de explicações detalhadas. [...] Foi assim que abandonei, aos seis anos, uma promissora carreira de pintor.” p. 8 (EXUPÉRY, 2009)
Meu desenho não representava um chapéu. Representava uma jiboia digerindo um elefante. Desenhei então o interior da jiboia, a fim de que as pessoas grandes pudessem entender melhor. Elas têm sempre necessidade de explicações detalhadas. [...] Foi assim que abandonei, aos seis anos, uma promissora carreira de pintor.” p. 8 (EXUPÉRY, 2009)
Assim começa um dos
livros infantis mais divertidos e intrigantes que eu já li. Do mesmo modo que
Robert Schuman, quando compôs suas Kinderszenen,
não exatamente para crianças, mas para adultos que haviam perdido o elemento
lúdico de sua infância, que foram sequestradas do direito da brincadeira
sagrada da criatividade livre e da imaginação, o livro O Pequeno Príncipe, de
Antoine de Saint-Exupéry apresenta uma deliciosa refeição para a alma crua do
mundo dos números.
Um adulto, piloto,
cujo avião fica sem combustível, está sozinho no seu próprio deserto,
sem perspectiva alguma no horizonte. Como em todas as fábulas do deserto, os
mitos das grandes religiões e, principalmente, nos contos árabes, é ali, naquela aparente
infertilidade da terra que o adulto, desiludido, passa a reencontrar sua alma
de artista, sua liberdade infantil, sua salvação na figura de um estranho e
pequeno príncipe que alega ter vindo de um planeta distante, uma criança meio misteriosa,
cheia de sabedoria, uma sabedoria metafórica do tipo zaratustriana, que vai
conduzindo o exausto piloto à riqueza de tudo quanto é simples.
A história nada mais
é do que uma forma de resgate interior, com uma sofisticação peculiar a todos
os escritores franceses e que esconde na sua forma leve e fluida aquilo que,
sabemos, constitui originalmente a principal meta de todo filósofo: conhecer a
si mesmo.
O mundo dos adultos
é frio, cinzento, e o pequeno príncipe, apesar de morar num
planeta pequeníssimo, tem um coração gigantesco, uma alma de viajante, de
buscador. O próprio piloto, ao narrar sua aventura, com muito pesar diz que
gostaria de poder contá-la tal como nos contos de fada, mas que se assim
fizesse os adultos não o compreenderiam, pois não entendem nada do mundo das
crianças. Uma de suas frases é bem parecida e, certamente, tem influência
nietzscheana:
“As crianças têm que ter muita paciência com as
pessoas grandes. Mas, com certeza, para nós, que compreendemos o significado da
vida, os números não têm tanta importância! Gostaria de ter começado esta
história como nos contos de fada. Gostaria de ter começado assim: ‘Era uma vez
um pequeno príncipe que habitava um planeta pouco maior que ele, e que
precisava de um amigo...’ Para aqueles que compreendem a vida, isso pareceria,
sem dúvida, muito mais verdadeiro. [...] É triste esquecer um amigo.Nem todo
mundo tem um amigo. E eu corro o risco de ficar como as pessoas grandes que só
se interessam por números. Foi por isso que comprei um estojo de aquarelas e
alguns lápis.” p. 18 (EXUPÉRY, 2009)
Também para
Nietzsche a filosofia, neste caso, a nobre aventura da vontade afirmativa, a existência dos espíritos livres, pertence apenas aos artistas e às crianças, os únicos capazes de sempre
construir sentidos novos a partir do niilismo que o movimento ascendente da Vida coloca diante
de nós. O pequeno príncipe, em seu pequeno planeta, certa feita, viu o sol se
pôr umas quarenta e quatro vezes (p. 25) - se quisermos, podemos até criar uma ponte deste trecho poético com a doutrina do Eterno Retorno. Passou por inúmeros planetas antes de
encontrar o adulto que teve de abandonar sua carreira de pintor, e em cada
lugar que passava aprendia algo novo. Amor
facti, diria Nietzsche.
O Pequeno Príncipe é antes de tudo um Grande
Filósofo, pois sua existência não lhe era um peso, e tudo quanto sofria, fosse
bom ou ruim, lhe parecia belo, merecia ser degustado. Assim é que ele se
apaixonou pela rosa com quem conviveu por tanto tempo em seu planeta distante,
mas que o aborrecia sempre com suas exigências. Assim é que, tendo conhecido o
seu adulto interior em pleno deserto do Saara, como num espelho, percebeu o
quão valiosa lhe era a amizade da rosa e se tornou responsável por aquilo que
ele cultivou.
Uma história tão
simplesmente rica como essa se torna agradável e reveladora a cada nova
leitura, pois nos ajuda a manter o equilíbrio entre o adulto e a criança, entre
o dionisíaco e o apolíneo, o diálogo constante entre vida e morte, construção e desconstrução, a eterna estabilidade paradoxal do movimento heraclitiano...
SAINT-EXUPEÉRY, Antoine De. O Pequeno Príncipe.
48° ed. Rio de Janeiro: Agir,
2009
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