quarta-feira, 2 de setembro de 2015

A sociedade da fantasmagoria



  A sociedade da fantasmagoria


A sociedade atual sofre de um mal pleno, escravizados por um mundo que nós mesmos construímos no processo de abstrair do concreto os elementos que nos interessam e inventar categorias platônicas cujas formas mutilam a multiplicidade dos indivíduos e a vasta gama de possibilidades da manifestação humana. Em verdade, temos medo profundo do devir, do movimento que é peculiar à natureza; temos medo de como a natureza se apresenta, crua e friamente, indiferente à nossa espécie e aos nossos desejos.
O corpo é um dos pilares que promovem continuamente o conflito entre a mente abstrata, idealista, utopista, pois ele é o vínculo com a natureza, o corpo nos mostra que não há consciência sem corpo. Daí que o corpo seja tratado de forma tão negativa e vedado com inúmeros tabus. A negação do corpo, no entanto, é somente a parte aparente do problema, mais profundamente não é apenas o corpo que queremos deixar de encarar, precisamos desesperadamente negar o movimento de todo o universo (quiçá pensar na possibilidade de que haja mesmo outros universos então...). Nosso orgulho é tão grande e reflete a grandeza de toda nossa fraqueza diante da aparente opressão que a vibração de todas as coisas revela. Nada está sob nosso controle, tudo está em contínuo movimento.
É óbvio que esta negação ocorre em níveis diversificados e em instâncias quase infinitas, cada indivíduo interfere no mundo de forma peculiar, mas, em geral, o modelo coletivo continua o mesmo e tem força exatamente por ter sido imposto e empurrado nas câmaras do inconsciente coletivo como verdade irrevogável, por mais de 2.500 anos, a partir do declínio do pensamento grego, mas mais pontualmente a partir de Sócrates, Platão e Aristóteles – que, não obstante, guarda relações com o contexto histórico da época destes grandes filósofos, com a decadência de Atenas e também da influência da cultura romana, juntamente com toda a deturpação da cultura e sabedoria helênica que se seguiu pelas mãos dos primeiros padres da igreja, seguido da subordinação da filosofia ao cárcere da teologia medieval (patrística e escolástica).
Esse modus operandi cognitivo se cristalizou tão eficazmente na consciência e, principalmente na cultura (responsável por perpetuar este modelo de engessamento do Real) que o fenômeno é considerado como parte orgânica da experiência de mundo, dos mecanismos cognitivos e das estruturas que sustentam a produção social da vida. As pessoas ficaram imersas na plena abstração e vivem apenas de pensamento (apesar de que este pensamento não significa necessariamente algum tipo de inteligência...). O mundo real sequer é encarado enquanto tal, pelo contrário, o mundo é analisado e experimentado a partir das categorias que nós construímos para experimentá-lo, como se o mundo houvesse sido criado à nossa imagem e semelhança, à imagem e semelhança da necessidade cognitiva de encontrar algo estável no frenesi caótico do mundo.
A rotina toda é pautada em categorias abstratas de pensamento, as ações morais não levam em consideração a existência dos corpos, os nossos, os dos outros seres ou mesmo o das esferas que orbitam o Sol. Os corpos humanos e os corpos de todos os outros objetos e seres se apresentam destituídos de corporeidade, são fantasmas, resquícios de matéria. É como se vivêssemos o mundo de Hades, perambulando como sombras desprovidas de vida – poderíamos também analisar, neste ínterim, o modo como a mente domina, ou procura dominar, o corpo de forma semelhante à brincadeira de marionetes.
Engana-se quem acredita que somos materialistas! Engana-se profundamente! Nosso materialismo é, como se costuma dizer, “só pra inglês ver”. Todo o aparato social de produção das mercadorias, do consumo, do capital e tudo mais seguem uma teologia fantasmagórica extremamente racional. Sim. Há uma lógica interna nesse mecanismo. A lógica do mundo ideal. Não o de Platão, neste caso, mas o mundo idealizado pelo mercado.
Até mesmo o exibicionismo dos corpos malhados na academia (quem dera as academias de hoje também se exercitassem nas questões reais e humanas...) é um desdobramento lógico, um efeito colateral da dissociação da mente que se isola do corpo. Quando se observa o corpo, tal perspectiva é

sempre realizada em terceira pessoa, na verdade o corpo foi proibido de ser vivenciado, quem lança o olhar sobre o corpo não é o corpo, mas a mente – e de forma metafísica a mente, posteriormente, se observa a si mesma. O corpo jamais deve ser experimentado em plenitude. E nisso a moral puritana, burlesca e provinciana continua a exercer sua drástica e pútrida influência, proibindo o prazer – ou, em casos mais urgentes, criando regras para que o prazer não escape ao controle da mente.
Mesmo as dores do corpo não servem sequer como sinais de corporeidade, logo que surgem, percebam isso, devem ser imediatamente controladas; no caso das dores com medicação e no caso dos prazeres com medidas morais complexas que estimulam e promovem a culpa. Esta culpa serve como dispositivo interno controlador do corpo que a mente sempre utiliza quando se sente ameaçada. Logo, qualquer sintoma corporal deve ser devidamente tratado e posto em ordem de acordo com os modelos imutáveis da racionalidade e da fantasmagoria social.
 
A tecnologia, na relação que exerce entre os corpos, a mente e o mundo, colabora para o surgimento de novos deslocamentos. Esses novos deslocamentos são de caráter duplo (na verdade, seria triplo, levando em consideração a primeira dissociação entre mente e corpo..., mas não queremos tratar disto agora.). O primeiro é o deslocamento que a mente faz para fugir do corpo, o segundo é o deslocamento de uma abstração para outra, uma viagem que a mente faz para fugir de si mesma, já que o movimento que atordoa o mundo atordoa também a mente. A mente foge para espaços mais abstratos, na virtualidade – que não deixa de ser um mundo em contraparte do mundo real. A primeira fuga é fuga do Real, a segunda fuga é fuga do mundo abstrato e do pensamento. Em ambos espaços (ou não-espaços) o corpo, que permanece no mundo que existe de fato, sofre profundamente desta esquizofrenia coletiva humana, porque a mente é o corpo e vice-versa. Os deslocamentos, de fato, são autoengano, ilusão e constituem mentira.
A mente, acreditando poder se afastar do corpo, termina por crer ser forte o suficiente para negar as forças da natureza e, exatamente nestes termos, acredita deixar de fazer parte da natureza, torna-se uma anomalia. E é esta anomalia mental que procura dominar e subjugar a natureza toda com a ilusão de poder. A nossa sociedade vive de abstração. Fantasmagoria da fantasmagoria!

Daniel Vieira de Carvalho

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