Da Sabedoria das Máscaras
Reconhecer minhas trevas interiores, tornar a olhar para o
buraco mais profundo de mim mesmo e encontrar a minha própria tumba, meu
sarcófago putrefato e pavoroso; desvelar a desordem e a loucura que jaziam (e
principalmente o caos que subjazia)...
Sentir forte nos lábios e em todos os órgãos palatares (tudo quanto há de
sensciente em minha integralidade total) o gosto, os cheiros, os vórtices de
nuances de claridade e escuridão, as cores (em sua grande parte
monocromática)... Conferir cada parte de meu vômito, procurando compreender a
alquimia de minha digestão mais secreta, analisando e separando, unindo,
sintetizando e retomando os elementos que ainda poderiam contribuir para algum
novo antídoto, considerando que alguns venenos, se invertidos, podem gerar
cura... Passo a passo, sentindo os medos mais violentos, mas sem conseguir
deixar de caminhar para frente, degrau por degrau, tateando tal como um cego,
farejando como cachorro, serpenteando como um dragão e sibilando como uma
ouroboros... Apoiando-me e sendo apoiado, dando respaldo ou sendo canalizado
como guia de outrem... Lançando para frente os meus sons, tal como os morcegos,
esperando a reverberação do som que pudesse devolver-me alguma confiança de
qualquer coisa concreta mais adiante (e esperando, ainda assim, a possibilidade
irrecusável de obter como resposta o oco abismal do além-homem...); ruminando,
como a vaca, cada letra da sapiência de tudo quanto me foi apresentado e deixando
que a fluidez do sophos realizasse a condução mefistotélica da luz rarefeita do
sage que em minha gruta habita... Agindo como um louco para provar os
julgamentos mais cruéis ou deixando de receber qualquer ajuda para sofrer
inteiramente sozinho os próprios muros (das quais grande parte eu mesmo ergui);
curioso ao ponto de ficar em péssimos lençóis, sem ter como fugir, nem como
alçar a voz nas alturas e pedir socorro, ou caindo das alturas por falta de
oxigênio, ou esquivando-me das esferas de luz por ter degustado as esferas da
dor nesta jornada tão misteriosa que é viver ex, de existir... Sem saber ao certo se a linguagem poderia
colaborar de alguma forma para expressar um entendimento que não foi adquirido
apenas por meio de linguagem, ou de racionalidade, ou de recursos lógicos e
formais... Foi mais ou menos assim que lancei a primeiríssima pedra de minha
própria morada.
Olho para o mundo tal como um viandante que se admira e se
assusta quando está posto diante de sua jornada, tal como aquele que olha para
o caminho, mas não é capaz de enxergar detalhes, nem prever as felicidades e as
tristezas que o aguardam. Olho para o mundo sabendo que o mundo mesmo não há, e
que as linhas colocadas em frente servem apenas como setas e sombras, como
metáforas que apontam para lugares que não são lugares, para objetos que não
são objetos, para entes que não são entes e para conceitos que não são
conceitos, mas que também não é o Nada!
Olho fixamente para a morte, porque a morte é quem me
aguarda em seu seio, mas fitá-la por muito tempo gela a alma... E aí eu crio
meus meios, as intermediações, as
telas artísticas, a arte mais vergonhosa e mais necessária de quem vive, a
hipocrisia de persona, a máscara dos
ditirambos...
O herói nunca se deixa desanimar diante de seu destino
agourento, e que é o destino de um herói senão a morte? Mas o herói é o maior
dos hipócritas, e em sua maior hipocrisia é ele o mais verdadeiro entre todos,
pois re-conhece seu próprio medo, experimenta sua sina todo o tempo, e ainda
assim não recrudesce, não definha e não se fecha... O segredo do herói não está
em desviar os olhos da morte... Ele jamais seria herói se assim agisse... O
segredo do herói é a tragédia... O segredo está em saber o modo correto de
utilizar as máscaras...
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