terça-feira, 6 de novembro de 2018

Filosofia da música


Filosofia da música e religião
Daniel Vieira de Carvalho


Do mesmo modo que é estranho acreditar que alguém realmente não goste de um bom chocolate, ou de sorvete, em plena era digital é muito difícil encontrar alguém que não ouça música – ainda que apenas passivamente, como no caso dos fumantes passivos! Isso não significa que todos possuem o mesmo modo de apreciação da beleza desta arte, a música é apreciada em cada tempo também de acordo com as convenções sociais. As nossas convenções, não era de se espantar, são quase todas degeneradas em gosto, não há língua que tenha 100% do paladar – o que dizer, então, da imensa falta de tempo para ouvir, escutar, experimentar boa música? –, portanto seria mesmo uma bela ilusão pensar que todos tenhamos bom gosto musical, algo muito parecido com aquele “bom senso bem distribuído” de Descartes. Por outro lado, a modernidade abriga possibilidades que os antigos desconheciam, a possibilidade de um mundo desencantado, sem canção, sem música que ofereça ao homem alívio das dores e sofrimentos do mundo, sem perspectiva metafísica que o console de sua desesperança.
Longe de nós, aqui, discutir qual o critério da boa arte, qual a melhor forma de expor os tons e semitons da escala musical, apenas deixar um pouco mais explícita a nossa realidade: ouve-se música como se toma um sorvete, ou quando lava-se a pia e os talheres, ou quando dirige-se um carro, ou ainda quando no motel, e no trabalho, e na escola, como se a música fosse apenas mais uma mercadoria morta nas prateleiras virtuais, mas nunca como música, nunca como som, nunca como arte.
Boécio teria muita resistência ao modo como ouvimos música hoje, mas há muita probabilidade de que se fosse possível ele abrir um portal no tempo/espaço, chegando ao nosso tempo, certamente adoraria saber que avanços tecnológicos, tanto na acústica quanto na área instrumental, a música atingiu até agora, não obstante lhe ficasse obscurecida a perspectiva perene da música das esferas.
A música, como qualquer outra arte, se apresenta sempre como mutatis mutandis e seria muito desonesto de nossa parte se não levássemos em consideração o papel fundamental que as religiões tiveram para que hoje pudéssemos ir até o passado e apreender as infinitas partes que compõem a harmonia da música humana, que seja na China, na Grécia ou na Índia, ou na Europa cristã. No caso ocidental, a Idade Média não pode simplesmente ser considerada sinônimo de nulidade artística apenas porque não se compara com a Antiguidade ou por que é uma oposição obscura e maléfica diante do despertar do Renascimento.
Boécio mesmo é um bom personagem para ver melhor pelos óculos da história. Por mais de 600 anos a obra De institutione Musica, de Boécio, foi utilizada como principal fonte teórica musical. Além de traduzir diversos textos gregos, na área da astronomia, música, geometria e matemática (o quadruvium), Boécio, nascido em Roma (c. 480), se tornou membro político da Itália em 510, depois foi acusado de traição, prática de magia e publicação de textos subversivos. Foi condenado à tortura até a morte. [1] Para Boécio, o músico é aquele que refletiu por si mesmo sobre a ciência da canção, não pela servidão do trabalho, mas pelo ato de contemplação, e Música é, na verdade, a totalidade dos fenômenos da natureza, em que há ordem e harmonia[2].

A idéia antiga de harmonia está ligada aos diversos graus de simbolização da ordem cósmica: “Os planetas aparecem dispostos no universo como escala (que é um dos sentidos dados na Grécia ao termo “harmonia” – ordenação, equilíbrio e acordo que se depreende dos sons musicais, no modo como conciliam e põem em consonância a diversidade dos contrários).”[3]

Se hoje o músico se vê atado à produção comercial de sua arte, a antiguidade nos apresenta um panorama muito diverso: Para as principais civilizações da antiguidade, o som organizado inteligentemente representava a mais elevada de todas as artes, e a música – a produção inteligente do som através de instrumentos musicais e das cordas vocais – a mais importante das ciências, o caminho mais poderoso da iluminação religiosa e a base de um governo estável e harmonioso.[4]
Já a Grécia, considerada não apenas berço da filosofia, mas da música ocidental, construiu um éthos, uma doutrina sobre os efeitos que a música pode produzir no homem e na comunidade (pólis).

“A cosmologia platônica é um aparelho de som onde a música total contida no disco astrológico, em sua recorrência infinita, é movida pelas intervenções (estereofônicas) do tempo, reproduzida em ritmos diversos e em dois canais (como se o presente tocasse num canal, ou numa caixa de som, o futuro noutra e o passado, que tem no mundo platônico uma precedência sobre as outras dimensões do tempo, tocasse nas duas). A harmonia sofre as pontuações temporais, suas intermitências rítmicas, seus pontos de ataque e repouso, de entrada e saída, sem deixar de soar na sua estática circularidade.”[5]

Se viajarmos até a Índia, encontraremos o poder místico do OM, som primordial que dá condições materiais de manifestação. Há, por todos os lugares onde a experiência com o Sagrado acontece, uma magia um encantamento, uma exaltação aos poderes ocultos nos sons: Entoar o OM em combinação com certas disciplinas mentais e espirituais, é de fundamental importância na raja ioga. Em algumas técnicas de meditação, o OM, na verdade, não se pronuncia, mas simplesmente se imagina com o ouvido interior, afinando, portanto, a alma diretamente pelo Som Sem Som.[6]
O que fica diante de nós, contudo, são as dúvidas do homem moderno: a música ainda pode nos conectar a algo que realmente valha a pena? Haverá alguma perspectiva nova no que diz respeito à experiência antropológica do Sagrado e à música? A música deve dizer alguma coisa, ou não deve dizer nada? A serviço de quem a música fica refém numa época de desencantamento? A experiência do Sagrado pode abarcar também o ruído moderno das máquinas?


[1] CASTANHEIRA, Carolina Parizzi. De Instituione musica, de Boécio: Livro 1: Tradução e Comentários.Dissertação de Pós-Graduação em Letras. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte: 2009. Acesso em: http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/ECAP-7QRGC9/disserta__o_completo.pdf?sequence=1, 25.08.2018.
[2] Conferir mais informações em: http://triviumquadrivim.blogspot.com/2013/02/boecio-e-musica-das-esferas.htmlm acesso em 25.08.2018.
[3] WISNIK, José Miguel. O Som e o Sentido: Uma outra história das músicas. 3° edição. Companhia das Letras, SP: 2009, p, 100-101)
[4] TAME, David. O Poder Oculto da Música: Um estudo da influência da música sobre o homem e sobre a sociedade, desde o tempo das antigas civilizações até o presente. Tradução: Octavio Mendes Cajado. Editora Cultrix, SP: 1984, p. 19.

[5] WISNIK, 2009, p. 102
[6] TAME, 1984, p. 184

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