terça-feira, 6 de novembro de 2018

Resenha do Livro "A Essência do Cristianismo" de Feuerbach


Resenha
FEUERBACH, Ludwig. A Essência do Cristianismo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

“Mas qual é então a essência do homem, da qual ele é consciente, ou o que realiza o gênero, a própria humanidade do homem? A razão, a vontade, o coração. Um homem completo possui a força do pensamento, a força da vontade e a força do coração.” (p. 36)

Como bom iluminista, Feuerbach se coloca diante de questões complexas que, outrora obscuras ou veladas, aparecem ao homem e à mulher num confronto apontado pelas luzes da Razão. Este livro pode ser tanto encarado como uma obra que coloca a fé em risco, o que é feito sempre com muita superficialidade, ou pode ser compreendido como um apelo ao humano, à crença em si mesmo e na natureza, um apelo a não fugir do mundo. A crítica é direcionada tanto à religião cristã quanto a todas as demais, trata-se, acima de tudo, de criticar, questionar e encontrar não apenas o wessen (essência) do cristianismo, mas de toda estrutura da religião que tem seu movimento principal ocorrendo em uma projeção externa das expectativas e ansiedades internas dos sujeitos que se pensam e se encontram em um mundo real, condicionados pela natureza e por inúmeros vetores que lhe obrigarão a realizar algum tipo de busca por sentido. Esta busca, de acordo com o autor, ocorre quando o homem e a mulher elencam os predicados mais nobres do humano e ao invés de enaltece-los nos homens e nas mulheres o fazem em um ser externo dissociado da realidade.

Seguindo a forma hegeliana, o autor divide sua obra em uma introdução com dois capítulos, explanando de modo geral o assunto tratado, passa à premissa da “essência verdadeira”, que é a antropológica da religião; depois à premissa “falsa”, que é a teológica; por fim uma conclusão e o apêndice com explicações, observações e outros documentos.

O primeiro capítulo da introdução, por título A Essência do Homem em Geral, é dedicado a encontrar primeiramente o elemento principal que distingue o homem dos animais. Segundo Feuerbach, este elemento essencial é a consciência.

“Por isso tem o animal apenas uma vida simples, mas o homem uma dupla: no animal é a vida interior idêntica à exterior – o homem possui uma vida interior e uma exterior. A vida interior do homem é a vida relacionada com o seu gênero, com a sua essência. O homem pensa, i.e., ele conversa, fala consigo mesmo. ” (p. 35)

Para Feuerbach, o homem é objeto de si mesmo, ele pode lançar sobre si mesmo um olhar objetivo, de fato, para o homem todas as coisas são tomadas como objetos. “Também a lua, o sol e as estrelas gritam para o homem o gnóthi saulón, o conheça-te a ti mesmo.” (p. 38).

No capítulo dois da introdução, A Essência da Religião em Geral, o autor continua a linha de raciocínio do capítulo anterior, acrescentando que os objetos sensoriais surgem ao indivíduo como objetos indiferentes e independentes da intenção, enquanto que o objeto religioso possui uma teleologia específica, ou nas palavras do autor um objeto mais selecionado: o ser mais excelente. Se até este período o homem conheceu a Deus enquanto divindade fora do plano humano, Feuerbach demonstra uma nova forma de conhecimento: “Pelo Deus conheces o homem e vice-versa pelo homem conheces o seu Deus: ambos são a mesma coisa. ” (p. 44). Quando o homem se refere a Deus, sempre o faz por predicação concernente ao mundo humano, estas predicações apresentam nossas próprias qualidades reveladas na divindade, de modo que não seria possível a religião sem o homem.

Deus Como entidade da Razão, o primeiro tópico da primeira parte do livro, apresenta uma importante pista sobre como o homem e a mulher se dissociaram de si mesmos. A religião não é mais que o fruto da cisão do homem com sua própria essência. Deus é o extremo positivo do homem, e a consciência que a inteligência ou a razão têm de sua própria perfeição. (p. 63). O homem é o extremo negativo, enquanto aquele onde todas as nulidades se manifestam. Deus é entidade da razão, pois a razão é o que há no homem de melhor, mas se o homem é nulidade, então Deus só poderia estar cindido do homem em um extremo oposto, Deus é Perfeito, o homem é imperfeito (e ambas predicações pertencem ao homem).

Deus como um ser moral ou lei. Aqui encontramos a afirmação de que Deus é a personificação da moralidade e enquanto tal aponta ao homem tanto o que ele não é quanto o que ele deve ser, ou se tornar. Estar consciente de um ser moral perfeito, cuja essência só pode ser humana, impõem ao homem finito e imperfeito o dever moral. Para se salvar da imposição moral e racional que acusa ao homem sua nulidade, o terror do pecado, o rigor da lei de um Deus que pune e odeia todos os que não agem conforme os predicados projetados neste ente abstrato, ele deve se se tornar consciente também de seu próprio coração, ou seja, o homem entende que ele não é apenas razão, mas também sentimento, amor, por isso Deus também ama. “A lei subordina o homem a si mesma, o amor o liberta. ” (p. 75). Em O mistério da encarnação ou Deus como entidade do coração, dá-se continuidade à explicação da consciência do amor por meio da qual o homem pode dar coesão à essência antropológica da religião. Posteriormente, em O mistério do Deus sofredor, Feuerbach prossegue sua linha de pensamento, demonstrando que se Deus é a Perfeição Humana, Cristo é o centro principal das misérias humanas, por isto que a Paixão é o elemento principal dos evangelhos, pois o amor se mantém por meio do sofrimento. Diferente da razão, o coração não inventa, não cria, não fantasia, ele sofre, ele recebe, sente. “Entretanto o sofrimento de Cristo não representa apenas o sofrimento moral, autônomo, o sofrimento do amor, a capacidade de se sacrificar pelo bem de outros; ele representa também o sofrimento como tal, o sofrimento enquanto expressão da capacidade de sofrer em geral. ” (p. 86).

O Mistério da Trindade e da Mãe de Deus sedimenta a estrutura hegeliana como método de análise da religião. O Deus Pai é, portanto o Eu Absoluto que se reconhece no Tu, o homem, enquanto o Espírito Santo, não obstante poder ser entendido por várias perspectivas, é a representação da subjetividade e da afetividade do espírito religioso. Por rigor, basta apenas o número dois, porquanto o Espírito Santo é o amor. O Pai é o Ser-Por-Si-Mesmo, portanto tese; o Filho é a abnegação da condição do Pai, portanto antítese. O Espírito Santo é uma personalidade precária, representa algo vago dentro da relação Pai-Filho, portanto era necessário assimilar uma personalidade feminina, ainda que o feminino representasse um elemento profano. Deus é apenas Pai-Filho, em outras palavras: “Maria não foi de fato colocada entre Pai e Filho como se tivesse o Pai gerado o Filho por meio dela, porque a relação do homem com a mulher era tida pelos cristãos como algo profano, um pecado; mas é o suficiente que a essência maternal tenha sido colocada junto ao Pai e ao Filho.” (p. 95).

Na Trindade, toda a concentração religiosa se direciona ao Filho, pois é ele quem acalora o coração dos homens, e estes se satisfazem sensorialmente com imagens e fantasias, o Cristo, portanto, é a essência objetiva da fantasia religiosa. Quando se diz que toda palavra é imagem, aceita-se que quando se conhece uma coisa por meio da palavra existe também a crença de que se conhece a coisa por completo, aceita-se que pela palavra se origina o domínio das coisas, O Mistério do Logos e da Imagem Divina.

Quando Deus pensa em Si, pensa em algo diverso de Si. Em O Mistério do princípio criado do universo em Deus, fica claro que o Universo é fruto de um processo psico-lógico, como objetivação da unidade da consciência e da consciência de si mesmo. O universo é gerado quando Deus se sabe, e é criado posteriormente, quando reconhecido como um outro ser que é igual a Deus, o Cristo é o Simulacro original que se torna o princípio criador do universo. Em termos antropológicos, o universo é aquilo que expõe as limitações do homem, ou seja, na busca de saber-se o homem descobre que tal ato nunca será pleno.

Em oposição ao espírito dogmático, munido das constantes permutas do kantismo e do hegelianismo, Feuerbach passa a escarafunchar a estrutura da religião como um todo, apontando as bases antropológicas e materiais da teologia e da mística, acima de tudo do elemento material fundante da religião. Para ele, não há como compreender Deus a não ser por meio do homem, já que sua obra se fundamenta na doutrina de que aquelas trevas antes da criação nada mais poderia ser que a própria natureza irracional que se opõe à inteligência humana, que é material, tem corpo, é carnal. A luz que ilumina as trevas já pressupõe a existência inata das trevas, isto é, o homem diz trevas a esta base fundamental de tudo, chama Deus à face da consciência que se apresenta como espírito e quase nunca consegue compreender que estas essências religiosas são, na verdade, essências humanas abstraídas que funcionam como sistemas significadores da nossa existência no mundo. O autor nos interpela com questionamentos fundamentais, sem os quais não teríamos real compreensão sobre as vias e caminhos que usamos para dizer o mundo e o experimenta-lo. Antes de Feuerbach poucas obras se dedicaram com tamanho afinco a esta tarefa de tomar consciência da estrutura da religião e de seus fundamentos antropológicos, pois a religião sempre foi considerada como fruto metafísico, resultado de um plano divino, advindo de outros planos, sempre numa hierarquia onde Deus está acima do homem. É claro que, por ser uma obra condicionada tanto à época, ao espírito do tempo e ao campo do próprio pensador, este livro não dá conta de explicar ou responder questões atuais sobre a espiritualidade e a religião moderna de modo geral, mas continua como uma das principais obras do pensamento humano sobre as manifestações religiosas, uma tentativa nobre e árdua de conhecer o que é o homem.
Afinal, esta questão ontológica há de ser verdadeiramente nossa essência. As respostas que damos são dadas sempre a partir do amplo espectro que nosso campo de visão nos permite, dentro da cultura em que vivemos e em relação a todos os outros seres e coisas, não obstante serem ontologicamente respostas condicionadas exatamente nestes mesmos termos. A análise de Feuerbach não exclui as outras respostas, no mais as assimila em partes e é assimilada pelas próximas respostas que cada pensador irá oferecer. As demandas de significação de quem somos serão sempre constantes e mutáveis (enquanto existirem estes seres complexos que somos, humanos.). E a religião, por ser um elemento antropológico nunca poderá ser completamente determinada, pois não se determina o homem e a mulher a não ser pela fantasia da linguagem e uma crença ainda obscura de que os homens e a natureza podem ser determinados por alguém, contidos de alguma forma e subjugados a uma escala de critérios exatos. Responder à pergunta: o que é o homem? Não é exatamente nossa maior dificuldade. Acreditar que uma resposta seja a única correta e a partir dela criar um sistema de dogmas, de modo a excluir tudo quanto lhe parecer contrário, este é o cerne do problema. E se durante milênios o cristianismo subsumiu a cultura ocidental a padrões rígidos, como a culpa, o ressentimento e a comiseração, hoje temos algo muito parecido na teocracia científica, que diante do assombro da incerteza deste vasto campo de possiblidades cósmicas preferiu determinar os temas e subtemas que devem ser pesquisados, predicando negativamente qualquer tentativa de pensar algo para além desta essência cristã que ainda tenta perverter os fluxos da natureza, julgando quais fenômenos são naturais e quais não são, quais indivíduos são doentes e quais sãos.


Esta resenha foi elaborada por Daniel Vieira de Carvalho, aluno do curso de bacharel em filosofia na Faculdade Dehoniana, para a matéria de Filosofia da Religião. RA 44608. Taubaté, SP: outubro de 2017.

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