Resenha
FEUERBACH,
Ludwig. A Essência do Cristianismo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
“Mas qual é então a
essência do homem, da qual ele é consciente, ou o que realiza o gênero, a
própria humanidade do homem? A razão, a vontade, o coração. Um homem completo
possui a força do pensamento, a força da vontade e a força do coração.” (p. 36)
Como bom iluminista,
Feuerbach se coloca diante de questões complexas que, outrora obscuras ou
veladas, aparecem ao homem e à mulher num confronto apontado pelas luzes da
Razão. Este livro pode ser tanto encarado como uma obra que coloca a fé em
risco, o que é feito sempre com muita superficialidade, ou pode ser
compreendido como um apelo ao humano, à crença em si mesmo e na natureza, um
apelo a não fugir do mundo. A crítica é direcionada tanto à religião cristã
quanto a todas as demais, trata-se, acima de tudo, de criticar, questionar e
encontrar não apenas o wessen (essência) do cristianismo, mas de toda
estrutura da religião que tem seu movimento principal ocorrendo em uma projeção
externa das expectativas e ansiedades internas dos sujeitos que se pensam e se
encontram em um mundo real, condicionados pela natureza e por inúmeros vetores
que lhe obrigarão a realizar algum tipo de busca por sentido. Esta busca, de
acordo com o autor, ocorre quando o homem e a mulher elencam os predicados mais
nobres do humano e ao invés de enaltece-los nos homens e nas mulheres o fazem
em um ser externo dissociado da realidade.
Seguindo a forma
hegeliana, o autor divide sua obra em uma introdução com dois capítulos,
explanando de modo geral o assunto tratado, passa à premissa da “essência
verdadeira”, que é a antropológica da religião; depois à premissa “falsa”, que
é a teológica; por fim uma conclusão e o apêndice com explicações, observações
e outros documentos.
O primeiro capítulo da
introdução, por título A Essência do Homem em Geral, é dedicado a
encontrar primeiramente o elemento principal que distingue o homem dos animais.
Segundo Feuerbach, este elemento essencial é a consciência.
“Por
isso tem o animal apenas uma vida simples, mas o homem uma dupla: no animal é a
vida interior idêntica à exterior – o homem possui uma vida interior e uma
exterior. A vida interior do homem é a vida relacionada com o seu gênero, com a
sua essência. O homem pensa, i.e., ele conversa, fala consigo mesmo. ” (p. 35)
Para Feuerbach, o
homem é objeto de si mesmo, ele pode lançar sobre si mesmo um olhar objetivo,
de fato, para o homem todas as coisas são tomadas como objetos. “Também a
lua, o sol e as estrelas gritam para o homem o gnóthi saulón, o conheça-te a ti
mesmo.” (p. 38).
No capítulo dois da
introdução, A Essência da Religião em Geral, o autor continua a linha de
raciocínio do capítulo anterior, acrescentando que os objetos sensoriais surgem
ao indivíduo como objetos indiferentes e independentes da intenção, enquanto
que o objeto religioso possui uma teleologia específica, ou nas palavras do
autor um objeto mais selecionado: o ser mais excelente. Se até este
período o homem conheceu a Deus enquanto divindade fora do plano humano,
Feuerbach demonstra uma nova forma de conhecimento: “Pelo Deus conheces o
homem e vice-versa pelo homem conheces o seu Deus: ambos são a mesma coisa.
” (p. 44). Quando o homem se refere a Deus, sempre o faz por predicação
concernente ao mundo humano, estas predicações apresentam nossas próprias
qualidades reveladas na divindade, de modo que não seria possível a religião
sem o homem.
Deus Como entidade da
Razão, o primeiro tópico da primeira parte do livro, apresenta
uma importante pista sobre como o homem e a mulher se dissociaram de si mesmos.
A religião não é mais que o fruto da cisão do homem com sua própria essência.
Deus é o extremo positivo do homem, e a consciência que a inteligência ou a
razão têm de sua própria perfeição. (p. 63). O homem é o extremo negativo,
enquanto aquele onde todas as nulidades se manifestam. Deus é entidade da
razão, pois a razão é o que há no homem de melhor, mas se o homem é nulidade,
então Deus só poderia estar cindido do homem em um extremo oposto, Deus é
Perfeito, o homem é imperfeito (e ambas predicações pertencem ao homem).
Deus como um ser moral
ou lei. Aqui encontramos a afirmação de que Deus é a
personificação da moralidade e enquanto tal aponta ao homem tanto o que ele não
é quanto o que ele deve ser, ou se tornar. Estar consciente de um ser moral
perfeito, cuja essência só pode ser humana, impõem ao homem finito e imperfeito
o dever moral. Para se salvar da imposição moral e racional que acusa ao homem
sua nulidade, o terror do pecado, o rigor da lei de um Deus que pune e odeia
todos os que não agem conforme os predicados projetados neste ente abstrato,
ele deve se se tornar consciente também de seu próprio coração, ou seja, o
homem entende que ele não é apenas razão, mas também sentimento, amor, por isso
Deus também ama. “A lei subordina o homem a si mesma, o amor o liberta. ”
(p. 75). Em O mistério da encarnação ou Deus como entidade do coração,
dá-se continuidade à explicação da consciência do amor por meio da qual o homem
pode dar coesão à essência antropológica da religião. Posteriormente, em O
mistério do Deus sofredor, Feuerbach prossegue sua linha de pensamento,
demonstrando que se Deus é a Perfeição Humana, Cristo é o centro principal das
misérias humanas, por isto que a Paixão é o elemento principal dos evangelhos,
pois o amor se mantém por meio do sofrimento. Diferente da razão, o coração não
inventa, não cria, não fantasia, ele sofre, ele recebe, sente. “Entretanto o
sofrimento de Cristo não representa apenas o sofrimento moral, autônomo, o
sofrimento do amor, a capacidade de se sacrificar pelo bem de outros; ele
representa também o sofrimento como tal, o sofrimento enquanto expressão da
capacidade de sofrer em geral. ” (p. 86).
O Mistério da Trindade
e da Mãe de Deus sedimenta a estrutura hegeliana como
método de análise da religião. O Deus Pai é, portanto o Eu Absoluto que se
reconhece no Tu, o homem, enquanto o Espírito Santo, não obstante poder ser
entendido por várias perspectivas, é a representação da subjetividade e da
afetividade do espírito religioso. Por rigor, basta apenas o número dois,
porquanto o Espírito Santo é o amor. O Pai é o Ser-Por-Si-Mesmo, portanto tese;
o Filho é a abnegação da condição do Pai, portanto antítese. O Espírito Santo é
uma personalidade precária, representa algo vago dentro da relação Pai-Filho,
portanto era necessário assimilar uma personalidade feminina, ainda que o
feminino representasse um elemento profano. Deus é apenas Pai-Filho, em outras
palavras: “Maria não foi de fato colocada entre Pai e Filho como se tivesse
o Pai gerado o Filho por meio dela, porque a relação do homem com a mulher era
tida pelos cristãos como algo profano, um pecado; mas é o suficiente que a
essência maternal tenha sido colocada junto ao Pai e ao Filho.” (p. 95).
Na Trindade, toda a
concentração religiosa se direciona ao Filho, pois é ele quem acalora o coração
dos homens, e estes se satisfazem sensorialmente com imagens e fantasias, o
Cristo, portanto, é a essência objetiva da fantasia religiosa. Quando se diz
que toda palavra é imagem, aceita-se que quando se conhece uma coisa por meio
da palavra existe também a crença de que se conhece a coisa por completo,
aceita-se que pela palavra se origina o domínio das coisas, O Mistério do
Logos e da Imagem Divina.
Quando Deus pensa em Si,
pensa em algo diverso de Si. Em O Mistério do princípio criado do universo
em Deus, fica claro que o Universo é fruto de um processo psico-lógico,
como objetivação da unidade da consciência e da consciência de si mesmo. O
universo é gerado quando Deus se sabe, e é criado posteriormente, quando
reconhecido como um outro ser que é igual a Deus, o Cristo é o Simulacro
original que se torna o princípio criador do universo. Em termos
antropológicos, o universo é aquilo que expõe as limitações do homem, ou seja,
na busca de saber-se o homem descobre que tal ato nunca será pleno.
Em oposição ao
espírito dogmático, munido das constantes permutas do kantismo e do
hegelianismo, Feuerbach passa a escarafunchar a estrutura da religião como um
todo, apontando as bases antropológicas e materiais da teologia e
da mística, acima de tudo do elemento material fundante da religião. Para ele,
não há como compreender Deus a não ser por meio do homem, já que sua obra se
fundamenta na doutrina de que aquelas trevas antes da criação nada mais
poderia ser que a própria natureza irracional que se opõe à inteligência
humana, que é material, tem corpo, é carnal. A luz que ilumina as trevas já
pressupõe a existência inata das trevas, isto é, o homem diz trevas a
esta base fundamental de tudo, chama Deus à face da consciência que se
apresenta como espírito e quase nunca consegue compreender que estas essências
religiosas são, na verdade, essências humanas abstraídas que funcionam como
sistemas significadores da nossa existência no mundo. O autor nos interpela com
questionamentos fundamentais, sem os quais não teríamos real compreensão sobre as
vias e caminhos que usamos para dizer o mundo e o experimenta-lo. Antes de
Feuerbach poucas obras se dedicaram com tamanho afinco a esta tarefa de tomar
consciência da estrutura da religião e de seus fundamentos antropológicos, pois
a religião sempre foi considerada como fruto metafísico, resultado de um plano
divino, advindo de outros planos, sempre numa hierarquia onde Deus está acima
do homem. É claro que, por ser uma obra condicionada tanto à época, ao espírito
do tempo e ao campo do próprio pensador, este livro não dá conta de explicar ou
responder questões atuais sobre a espiritualidade e a religião moderna de modo
geral, mas continua como uma das principais obras do pensamento humano sobre as
manifestações religiosas, uma tentativa nobre e árdua de conhecer o que é o
homem.
Afinal, esta questão
ontológica há de ser verdadeiramente nossa essência. As respostas que damos
são dadas sempre a partir do amplo espectro que nosso campo de visão nos
permite, dentro da cultura em que vivemos e em relação a todos os outros seres
e coisas, não obstante serem ontologicamente respostas condicionadas
exatamente nestes mesmos termos. A análise de Feuerbach não exclui as outras
respostas, no mais as assimila em partes e é assimilada pelas próximas
respostas que cada pensador irá oferecer. As demandas de significação de quem
somos serão sempre constantes e mutáveis (enquanto existirem estes seres
complexos que somos, humanos.). E a religião, por ser um elemento antropológico
nunca poderá ser completamente determinada, pois não se determina o homem e a
mulher a não ser pela fantasia da linguagem e uma crença ainda obscura de que
os homens e a natureza podem ser determinados por alguém, contidos de alguma
forma e subjugados a uma escala de critérios exatos. Responder à pergunta: o
que é o homem? Não é exatamente nossa maior dificuldade. Acreditar que uma
resposta seja a única correta e a partir dela criar um sistema de dogmas, de
modo a excluir tudo quanto lhe parecer contrário, este é o cerne do problema. E
se durante milênios o cristianismo subsumiu a cultura ocidental a padrões
rígidos, como a culpa, o ressentimento e a comiseração, hoje temos algo muito
parecido na teocracia científica, que diante do assombro da incerteza deste
vasto campo de possiblidades cósmicas preferiu determinar os temas e subtemas
que devem ser pesquisados, predicando negativamente qualquer tentativa de
pensar algo para além desta essência cristã que ainda tenta perverter os fluxos
da natureza, julgando quais fenômenos são naturais e quais não são, quais
indivíduos são doentes e quais sãos.
Esta resenha foi
elaborada por Daniel Vieira de Carvalho, aluno do curso de bacharel em
filosofia na Faculdade Dehoniana, para a matéria de Filosofia da Religião. RA 44608. Taubaté, SP: outubro de 2017.
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