quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Irreversibilidade da Degenerescência Musical

Sinto tanta falta de grandes obras como esta (concerto de piano n° 27 em Si bemol maior, k 595, de Mozart), e por vezes temo sempre ter de retornar aos antigos para sentir uma coerência musical acontecendo de forma tão sofisticada, sim, pois é assustador a antecipação de um futuro em que não existam mais condições mentais de criação musical em níveis mais altos.

É como se toda construção da harmonia houvesse ruido sem que houvesse qualquer meio de evitar a decadência, não apenas do gosto (ou da degenerescência da audição, tal como fala Theodor Adorno, em "O Fetiche da Música"), mas da música como um todo, um todo orgânico*.

A música atual não passa de um reflexo crasso de uma sociedade morta, em que a máxima "Gott ist Tot" nada mais é que a consumação de uma profecia que desvelou a auto-eutanásia social, a podridão de uma cultura que se perfaz cadavericamente e vive, aos frangalhos, comendo o resto, as migalhas dos grandes de outrora...

Estou consciente de minha nostalgia saudosista e de minha relutância em aceitar os padrões musicais que sejam alternativos, mas que posso fazer diante de um defunto que fede? A reação é sintomática: tapo as narinas e quero logo enterrar essa putrefação torpe!

Quero vida, quero espírito na música! Quero música na vida e vida na música!

E quando digo espírito, é porque não consigo mais reconhecer vitalidade na música que é oferecida de forma muito parecida com o que presenciamos no âmbito gastronômico de uma cultura fast-food, onde nada pode durar mais que 5' a 8' minutos, pois quer se evitar a fadiga, ou numa hipótese mais crua, se quer evitar que o pensamento debruce por mais tempo diante de algo que o torne grande, sabedor de sua própria sapiência, de alguma coisa que toque o sujeito e o seduza a olhar para dentro, a se dobrar ante sua condição e degustar-se com um pouco mais de demora. Oras, e não é isso mesmo  que eu chamo de um pseudo-movimento heraclitiano, um movimento de heraclitianismo do povo (aproveitando o trocadilho nietzscheano)?

A rapidez e frugalidade invertida do tempo, o escorrimento espetacular de pessoas em frenesi desesperadas por atitude, sedentas por ação, que sofrem a ansiedade, que anseiam projetar-se sempre e de forma tão escancarada que beira o ridículo estapafúrdio... Se quisermos recorrer ao arcabouço freudiano ou junguiano provavelmente cometeríamos um desperdício de esforço, pois é óbvio e se apresenta como uma condição nua que tal desejo desenfreado por movimento seja a externalização da incapacidade que se produziu, nos meandros da lógica de nossa civilização, de gerar e criar indivíduos que se auto-cultivem (bildung alemão, ou paidéia grega), que saibam compreender os ciclos de expansão e retração necessárias à saúde harmônica da vida que ascende, da vida que quer, da Vontade que se manifesta como polaridade e como possibilidade de superação, ou de outra forma, da potência infinita que cada homem dispõe para construir seu próprio campo de atuação, seu próprio mundo, sua libertação ou realização efetiva.

Diante de uma obra como o concerto n° 27 de Mozart e uma interpretação como a de Maria João Pires, eu simplesmente fico sem argumento, não há como não sentir vida, não há como ficar inerte à aspectação do belo que ali se faz presente de forma intensa.
E já que estamos falando em degustação, espero que meus leitores não sejam displicentes a respeito de nossa maior falta, isto é, o prazer de usufruir com calma e tranquilidade, de saborear um bom vinho:



Como pianista e filósofo eu sempre me questiono se ainda é possível interpretar algo hoje e faço tal questionamento a todos quanto sabem apreciar, pois as condições materiais (entendam materiais no sentido mais profundo e menos caricatural, peço-vos) que nos são oferecidas no modo de produção social são completamente contrárias a alguma coisa que se demore, demorar-se para comer é um pecado! Nós somos selvagens, devemos comer tudo depressa, como se não fosse possível outra refeição amanhã, e desta forma não são apenas moedas ou lucros que acumulamos, nós somos acumuladores de gordura, de energia, de tudo quanto se coloque em nossas mãos. A tudo devoramos sem respeito e sem escrúpulo, comida, dinheiro, mercadorias, pessoas.

Minha nostalgia se aquece ainda mais porque ao olhar para trás eu sempre re-afirmo e con-firmo minha intuição-observadora de que muito dificilmente poderemos encontrar por aqui intérpretes, tais como Elis Regina, Maysa, Bethania, Edith Piaf, Elvis ou qualquer outro que faça parte da frequência à qual me refiro. Não se trata de não haver mais indivíduos capazes de tal façanha magnífica, pelo contrário, meu pessimismo degustativo consiste em apreender e constatar que o fluxo social aponta especificamente para uma espécie de irreversibilidade da degenerescência dos aparatos de apreciação estética que é uma consequência apodítica e necessária da lógica interna e estrutural da própria sociedade em que vivemos.



*O que não significa, de forma alguma, que sejamos puristas e defendamos um anti-modernismo da arte e uma consideração do tipo romântica demasiada em relação à música mais antiga. Quando me refiro a um todo orgânico faço alusão, também, a uma complexidade peculiar da atividade criadora própria do artista que consegue captar e expor algo que é inteiramente dele e que, não obstante, o ultrapasse porque é completamente aberto, tal como o dasein (como diria Heidegger), ou como um devir dionisíaco.

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